Prefeitura de Osasco

Dizem que o ano começa depois do carnaval, eu acredito que seja durante ele, pois neste período começam as festas, fruto de organizações coletivas durante muitos meses, também iniciam-se os burburinhos, fruto dos indivíduos que só dão as caras através das máscaras.

E assim como o carnaval está no calendário de todo brasileiro, o machismo estrutural também. É falacioso elencar grupos que possam “permitir” ou “abrir”, espaço para a participação das mulheres nos blocos ou grupos de samba. Porque a verdade é que a mulher sempre fez parte do samba rural paulista, os primeiros registros históricos ilustram a participação de ambos os gêneros na manifestação: homem e mulher dançando e o movimento da dança junto aos instrumentos musicais. 

Em estudos sobre a cultura popular, Mario de Andrade descreve o Samba Rural Paulista ou o Samba de Bumbo: “Enfileirados os instrumentistas, com o bumbo ao centro, todos se aglomeram em torno deste, no geral inclinados pra frente como que escutando uma consulta feita em segredo. É pois a coletividade que decide do texto-melodia com que vai sambar. No grupo em consulta, um solista propõe um texto-melodia. Não há rito especial nesta proposta. O solista canta, canta no geral bastante incerto, improvisando. O seu canto, na infinita maioria das vezes, é uma quadra ou um dístico. O coro responde. O solista canta de novo. O coro torna a responder. E assim, aos poucos, desta dialogação, vai se fixando um texto-melodia qualquer. O bumbo está bem atento. Quando percebe que a coisa pegou e o grupo, memorizando com facilidade o que lhe propôs o solista, responde unânime e com entusiasmo, dá uma batida forte e entra no ritmo em que estão cantando. Imediatamente à batida mandona do bumbo, os outros instrumentos começam tocando também, e a dança principia”.

Fica difícil de entender, para quem conhece a cidade de Santana de Parnaíba, qual a pesquisa ou a história que figuram na cabeça do povo “tradicional parnaibano” que determinam um espaço supervalorizado aos tocadores de bumbo e diminui a importância dos chocalhos, dos cabeções e dos dançarinos. É importante saber que a estrutura de grande parte dos grupos e blocos de Samba Rural Paulista de Santana de Parnaíba segue um modelo de apropriação branco, cisgênero e da classe alta desta cidade histórica. Isso legitima a continuidade da valorização de todo e qualquer espaço das mulheres no samba em tempos atuais. Mas aí também se coloca mais uma das contradições da manifestação da cultura popular na cidade. 

Sem aprofundarmos a reflexão que se faz necessária sobre quem é o portador de uma das tradições mais antigas no estado de São Paulo, mesmo porque acontece em diversos municípios do estado. Em Santana de Parnaíba ao mesmo tempo que iniciou-se um processo de gentrificação que explica muito a dinâmica de um período do samba de bumbo, construiu-se um movimento de apropriação e em seguida intensas tentativas de apagamento do povo que iniciou essa manifestação e este é um elemento central na tradicionalidade de todos os grupos desta cidade. 

Todo este cenário deu e dá condições de uma nova geração, contextualizada por uma identidade cultural multi étnica, valorizar, criticar e criar novas formas do fazer, da continuidade do samba rural paulista. Neste sentido me parece síndrome de vira-latas e torna-se irrelevante o fato de um grupo não tradicional dar a uma mulher a oportunidade de tocar durante o carnaval. 

A história do samba em Santana de Parnaíba continuará cheia de contradições e infelizmente sem nenhum avanço enquanto não admitirmos o racismo, o machismo, a  homofobia e a luta de classes neste contexto local. A discussão acaba ficando relegada a esse espaço do calendário, já que nesta época acontece a maior concentração de ações voltadas a essa manifestação da cultura popular local, envolvendo grande número de grupos e uma visibilidade midiática da gestão local. Ou como de fato é, a reflexão é abandonada, para que o carnaval possa acontecer, impossibilitando avançarmos realmente na questão de representatividade, inclusive feminina, como portadora e difusora da tradição.

As contradições geram frutos preciosos e neste sentido me recordo de algumas experiências inspiradoras, como o grupo Samba do Pé Vermêio, Bloco Abayomi e Briga de Galo que são inspirados pelos grupos tradicionais, pesquisam a cultura popular e são muito cuidadosos com os fundamentos originais do samba. Seu fazer é composto por mulheres (no caso do bloco Abayomi somente por mulheres), jovens, negros, gays e principalmente pelo povo periférico: 

“Nóis viemo lá do morro, a quebrada também veio, se ajunta minha gente, aqui chegou o Pé Vermêio”

Essas são experiências reais de representatividade e não de oportunidade, ou melhor oportunismo. Falo por conhecimento de causa, que o processo de existir desses grupos, como de poucos, é de resistir, sem apoios de políticas públicas afirmativas, sem financiamentos públicos ou privados, sem herança bandeirante, cada bumbo, afinação e saída é feito com esforço e profundo respeito e preocupação aos fundamentos do samba.  Pra quem diariamente é revistado pela Polícia, sofre assédio e violência nas ruas, poder sambar no carnaval tendo a escolta das forças de segurança não é algo confortável e ainda assim não garante que não existirá confronto direto com os carros importados no centro na cidade que não querem esperar o samba passar. Alguns ficam até o final do samba, tendo que sair antes do samba acabar pra pegar o último ônibus para um dos bairros distantes nessa grande Santana de Parnaíba, muitos são parados na volta pra casa por uma batida policial. Enquanto outros sufocam a manifestação definindo-se como guardiões dela. 

Entendo que a participação identitária do carnaval não aufere uma realidade sobre o samba rural, porque o debate é muito mais profundo, a bem da verdade, o carnaval fala muito mais sobre a nossa sociedade do que sobre o samba. Fato é que o que se pode fazer é participar e perceber na prática qual representatividade encontramos nas ruas, nas saídas dos grupos e blocos. 

Artigo por Cintia Sales – Sambadora de Santana de Parnaíba. Graduada em jornalismo (FIAM-FAAM) e Pós graduada em Gestão Cultural (SENAC).